Novas produções foram lançadas neste mês de novembro para celebrar a obra do escritor brasileiro Lima Barreto, cuja morte completou 100 anos dia 1º. No mês da Consciência Negra, um livro, um filme e um podcast dão destaque ao autor que soube retratar a cidade do Rio de Janeiro além dos cenários de cartão postal, e que era crítico ferrenho do racismo, que ele sofria na pele, já na década 1910.
Podcast “Lima Barreto, o negro é a cor mais cortante”
O modo como Lima Barreto conseguiu interpretar o Brasil do passado de uma forma que continua atual no presente também é tema do podcast “Lima Barreto, o negro é a cor mais cortante”, da Rádio Batuta, criada pelo Instituto Moreira Salles.
“Quando ele pensa em corrupção, em desigualdade, e nas ambiguidades do Brasil, ele está refletindo diretamente sobre a Primeira República, mas também sobre a nossa República de hoje”, explicou Gabriel Chagas, professor de literatura e cultura luso-afro-brasileira na Universidade de Miami.
O Gabriel é um dos apresentadores do podcast, ao lado da professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Beatriz Resende. Os dois recebem um convidado por episódio para tratar sobre a vida e a obra do escritor carioca, suas críticas ao racismo e à política, sua passagem pelo hospício e a forma como ele retratou a realidade do Rio de Janeiro.
Lima Barreto foi um dos primeiros escritores a deslocar o foco da literatura para os subúrbios do Rio de Janeiro, mostrando uma parte da cidade que outros artistas preferiram esconder.
“Ele escolhe como tema o subúrbio do Rio de Janeiro, e chama atenção para um país que, em geral, ignora grande parte das suas periferias”, disse Chagas.
O professor explicou que esse é um dos motivos da obra de Lima Barreto seguir tão atual, alguns problemas e desafios do Brasil permanecem os mesmos ao longo dos anos, vão apenas se atualizando.
“Um país que ignora seus avessos, suas ambiguidades e seus interiores jamais pode ter uma democracia efetiva e um progresso de fato. Lima Barreto percebeu isso há mais de 100 anos”, completou Chagas.
Livro “Triste República”
“Lima talvez estivesse a frente de seu tempo, e por isso vem sendo retomado agora”, diz a historiadora Lilia Schwarcz, que já biografou o autor e lança, neste mês, o livro “Triste República”, junto ao cartunista Spacca, pela editora Companhia das Letras.
O livro é uma HQ que conta a história da Primeira República brasileira (que durou de 1889 a 1930) pelos olhos críticos de Lima Barreto.
Spacca ressalta que os problemas e as preocupações da época se parecem muito aos de hoje. Desde a pandemia de gripe espanhola que acometeu o mundo e o Brasil entre 1918 e 1920, até as observações de Lima sobre o que hoje chamamos de “racismo estrutural”, que são os reflexos mais sutis da discriminação racial na nossa sociedade.
Lima Barreto foi escolhido para conduzir o leitor no passeio pelo passado, pois como disse Spacca, “foi alguém que viveu e sofreu nesse tempo, e soube registrar isso em sua obra.” O escritor, inclusive, chegou a receber críticas por fazer romances e crônicas muito ancorados na realidade brasileira.
Após ter perdido a mãe muito cedo e ter visto o pai enlouquecer durante a infância, Lima assumiu o sustento da família. Ao longo da vida se tornou dependente do álcool, e por causa do alcoolismo foi parar em um hospício duas vezes.

Filme “Lima Barreto, ao terceiro dia”
O filme “Lima Barreto, ao terceiro dia”, da Globo Filmes, com direção de Luiz Antonio Pillar, retrata um dos períodos no qual ele ficou internado no hospício. O autor foi internado pois começou a ter delírios causados pelo álcool, e no longa ele passa a alucinar com os personagens de seu romance mais famoso, “O Triste Fim de Policarpo Quaresma”, e a relembrar sua juventude.
Como pontua Schwarcz, “a questão da loucura social é parte fundamental da obra do Lima”. Ele percebeu, muito antes da luta antimanicomial sequer existir aqui no Brasil, como apenas as classes subalternas iam parar no manicômio.
Ele descreve em sua obra como as pessoas negras e pobres estavam mais propensas a serem internadas e consideradas loucas, situação que perdura até hoje. Lima antecipou diversas discussões que passariam a se popularizar apenas mais tarde, como a influência da raça e da classe na saúde mental e no tratamento pelas instituições públicas.